Pe. Júlio Maria: homem do Amor e Sacrifício

Pe. José Herval Ferreira, sdn

Vamos entrar na alma do Pe. Júlio Maria e tentar pegar o que de novo ou especial foi derramado por Deus no seu coração de fundador.

Conhecemos bastante a sua biografia de missionário. Ele mesmo narrou suas andanças missionárias. Escreveu muito, colocando o seu coração em seus escritos. Ele passou sua vida demonstrando seu afeto para com o povo. Soube amar a Deus e soube se inculturar no meio do povo por onde passou, particularmente em nosso Brasil.

Sem dúvida, o PJM foi um homem tomado por Deus, partido e repartido através de uma vida de sacrifício, e doado inteiramente à missão. Ele foi uma hóstia viva, dizemos nós hoje.

Portanto, o que nos interessa nele é o seu ser de consagrado que se entregou ao povo, a modo de pão partilhado.

Faz parte integrante da espiritualidade de nosso fundador o seu lema pessoal, o qual foi também passado para a Congregação, como um slogan motivador da missão.

O lema está em nosso brasão, sob a efígie de Nossa Senhora do Santíssimo Sacramento. Lá nós lemos: "AMOR E SACRIFÍCIO".  Esse lema do fundador pode ser relido por nós hoje de três modos.

1) Sua história foi de amor e sacrifício.

Basta lembrar sua história nos três continentes onde ele viveu. Todos nós conhecemos sua biografia: homem inteligente, prático, realizador. Sabemos como durante toda sua vida ele teve reais sucessos, e recebeu também grandes podadas que dariam para desanimar qualquer pessoa. Ele não desanimou. Pelo contrário, ele foi se tornando cada vez mais fecundo. Era nessa fecundidade que se manifestava o seu carisma.

Isso começou cedo em sua vida. Adolescente ainda, partiu para a África com todo aquele entusiasmo de um jovem de ideal missionário.

Na época, a missão era como que uma aventura. Pois bem, lá na África o robusto jovem europeu foi entendendo o que significava entregar-se totalmente a Deus e sacrificar-se pelos mais fracos e necessitados.[1]

Na África ele sentiu nova inspiração de Deus. Logo surgiram novos sofrimentos, novas podas que o ajudaram a viver intensamente o amor e o sacrifício. Voltou para a Europa.

Na Europa procurou um lugar para se consagrar como religioso padre. Ele se encantou com uma congregação pobre e recém-fundada pelo Pe. João Berthier, os Missionários da Sagrada Família. Nela se tornou um vibrante missionário.

No auge de seu “sucesso missionário” na Europa, novo sacrifício. Foi enviado para Macapá. Os sacrifícios advindos da missão o gratificavam. As incompreensões da parte de determinados colegas[2] e da parte da hierarquia o torturavam sobremaneira. Foi o que ouvimos muitas vezes dos lábios de nossa inesquecível Madre Maria de Jesus.

Depois se transfere para Belém. Em Belém, outro grande sacrifício: teve de sair expulso pelo então arcebispo daquela cidade. Foi duro para ele ter de sair de lá da forma como saiu. [3]  Mas, com essa nova poda, o homem partiu para outras regiões com muito mais fecundidade. Todos sabemos disso.

Em Manhumirim continuou sua vida de sacrifício. Nessa pequena cidade de Minas ele realizou o que havia dito num de seus discursos: "A fome, a doença, as provações, tudo isso tenho oferecido ao povo do Brasil em minha vida de missionário. Amo o Brasil e quero que ele guarde, na terra que bebeu minhas lágrimas, a cinza da minha carne e dos meus ossos." – E foi até o final, quando morreu no campo de missão. A Matriz de Manhumirim guarda respeitosamente os seus restos mortais.

2) Sua kénosis

A teologia da missão hoje enfatiza bastante a kênosis de Jesus Cristo e de todo missionário que se dispõe a anunciar Jesus Cristo e o Reino de Deus [4].

Pois bem, o Pe. Júlio Maria levou muito a sério a kénosis de Jesus Cristo. Para isso ele  quis se tornar "escravo" de Maria Santíssima que falou com todas as letras: "Eis aqui a escrava do Senhor" (Lc 1,38).

Com "amor e sacrifício" o PJM atingiu aquela maturidade que todos conhecemos e admiramos. Ele quis ser escravo como Jesus o foi. Ele quis ser escravo de Maria para ser levado por ela a se sacrificar por Jesus e com Jesus em favor do povo como uma hóstia viva. Mistério da pedagogia de Deus!

Notar que PJM foi formado dentro da Escola Francesa da espiritualidade. Nessa escola, um dos mestres era São Luiz Maria Grignion de Montfort. O PJM se empolgou com a espiritualidade monfortiana. Eis o porquê de sua admiração pela espiritualidade da santa escravidão de São Luiz Maria G. de Montfort.

Quando nosso fundador, repetindo as expressões de Montfort, fala de "santa escravidão", fica bem nítida a idéia bíblica do despojamento ou kénosis vivido por Jesus Cristo (Flp 2,7).

Jesus não se esvaziou por simples acaso. Pelo contrário, seu esvaziamento foi por total coerência com sua missão. Jesus se despojou do possível espírito de reivindicação. Ele não ficou indo atrás de privilégios. Por sua kénosis, Jesus teve condições de se sentir em casa no meio dos pecadores, dos pobres e  desprezados e marginalizados do seu tempo.

O nosso fundador, por sua vida kenótica está sempre a nos interpelar como missionários sacramentinos de Nossa Senhora.

3) A mistagogia eucarística

Aqui está o ponto alto da espiritualidade julimariana. Em seus escritos o PJM insiste que Jesus se encarnou no seio de Maria[5] para fazer a vontade do Pai, a saber, para se oferecer em sacrifício pela salvação do mundo (Hb 10,5-7). Era esse o modo como PJM percebia e vivia a Eucaristia: "AMOR (à Eucaristia e ao povo) e SACRIFÍCIO” na vida pessoal e ação missionária).[6]   – É o que veremos a seguir.

Dom Miranda destaca dois princípios básicos do ME que deverão nos ajudar a ler, meditar e rezar as idéias fundamentais do nosso PJM:

  1. "A Eucaristia é o prolongamento da Encarnação e da Redenção.
  2. "Maria tomou parte ativa na vida de Jesus, inclusive no mistério pascal atualizado na Eucaristia".

Hoje sabemos que não podemos estabelecer uma identidade entre o corpo sacramental de Cristo na Eucaristia com o Corpo de Jesus Cristo gerado no seio de Maria. Por outro lado não podemos desconsiderar a vida eucarística de Maria lá nas primeiras comunidades fundantes de nossa Igreja. 

Notar que o livro de Dom Miranda é um texto antigo analisando outro texto mais antigo ainda. Dom Miranda em 1961 falou que ME é uma mistura de "teologia dogmática, de ascese, mística, piedade e até de poesia".  Também disse que no livro ME "há extensas dissertações em tom por vezes oratório".

Por aí se vê que temos de ler a obra do fundador com todo o critério e respeito que ele e sua obra merecem. 

Seja como for, a vivência eucarística do nosso PJM está aí a nos questionar sobre a nossa vivência do Mistério Pascal do Cristo hoje... Seu amor à Mãe de Jesus (a “Mulher Eucarística”) está aí a nos perguntar: como está a nossa vida espiritual de religiosos julimarianos?  

 

[1] Ver as Notas Espirituais do  Pe. Júlio Maria  De Lombaerde (RÈGLEMENT) – (Tradução do Pe. Demerval Alves Botelho). O pequeno livro revela a determinação do nosso fundador. Já trabalhando no Brasil, ele acrescentou no seu Règlement o seguinte: “Este pequeno regulamento foi escrito na África, durante a minha permanência em Arris, onde passei quatro anos em missão. As febres me obrigaram a deixá-la. Daquele tempo há certas coisas que não posso mais praticar hoje. A maior parte, porém, continua sendo praticada e aplicável aqui, nas Missões da América - 1917).”

[2] É triste o que se encontra em algumas páginas do livro de Tombo da Paróquia de Macapá. Determinados irmãos seus de congregação que vieram depois dele tiveram a petulância de escrever páginas realmente descaridosas com a intenção de denegrir a imagem do PJM - Por outro lado, é preciso notar que Dom Amando Bahlmann, em visita pastoral, já havia registrado no mesmo livro de Tombo aos 20 de março de 1919 um merecido reconhecimento pela ação missionária do nosso fundador e das irmãs Filhas do Coração Imaculado de Maria. – Também no livro MEMÓRIAS INACABADAS, Coleção Centenário - 11, lemos que Dom Amando voltou a reconhecer tudo quanto o nosso PJM fez em sua Prelazia de Santarém. Elogiando e reconhecendo o que Pe. Júlio realizou, assim escreveu o bispo: “Macapá, por seu movimento religioso, ocupou um dos primeiros lugares na Prelazia de Santarém” (Dom Amando, em Memórias Inacabadas, páginas 144-147).  

[3] Para não pairar dúvidas sobre o porquê de sua inesperada transferência de Belém, é bom conhecer a história real do que se passava naquela arquidiocese, na época, em situação bem complicada.  - O historiador Riolando Azzi nos dá uma sucinta e bem documentada descrição  do que ocasionou a “expulsão” do Pe. Júlio de Belém. – Ler “A IGREJA DO BRASIL: DA APOLOGÉTICA À RENOVAÇÃO PASTORAL / Atuação do Padre Júlio Maria e das Irmãs Sacramentinas de Nossa Senhora  -  Volume I. -   Ver páginas 74 a 95.

[4] Do Documento de Aparecida: “‘Quando em suas parábolas Jesus fala do pastor que vai atrás da ovelha desgarrada, da mulher que procura a dracma, do pai que sai ao encontro de seu filho pródigo e o abraça, não se trata só de meras palavras, mas da explicação de seu próprio ser e agir’. Essa prova definitiva de amor tem o caráter de um esvaziamento radical (kênosis), porque Cristo ‘se humilhou a si mesmo fazendo-se obediente até à morte de cruz’ (Flp 2,5)” – (DA 242).

[5] Aqui temos de nos referir ao seu livro “Maria e a Eucaristia” (1937) e a outro estudo feito por Dom Miranda em 1961 ("Teologia Sacramentina do Padre Júlio Maria"). Essa obra de Dom Miranda nos ajuda a pegar o essencial do grosso volume de "Maria e a Eucaristia".

[6] Conf. Const. de 1928, números 3 e 4.

 

 

 

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