A devoção Mariana e o lugar do feminino na experiência de fé: esperança e profecia I

A DEVOÇÃO MARIANA E O “LUGAR” DO FEMININO NA EXPERIÊNCIA DE FÉ: ESPERANÇA E PROFECIA - I

 Pe. Rodrigo Ferreira da Costa, SDN

(Texto apresentado na conferência virtual do tríduo em preparação ao 13 de maio 2024, dia dos Sacramentinos de Nossa Senhora)

 1. Somos herdeiros da fé “dos outros”

 São Paulo falando sobre a fé de seu discípulo Timóteo, diz: “recordo-me também da fé sincera que há em ti, fé que habitou, primeiro, em tua avó Loide e em tua mãe Eunice, e que certamente habita também em ti” (2Tm1,5). É o testemunho de uma fé “caseira” cultivada e transmitida na família, principalmente pelas mulheres (mães, avós, madrinhas, tias, e talvez até por uma empregada doméstica[1]).

Nota-se que as mulheres são as grandes transmissoras da fé. Como afirma o Papa Francisco: “A fé se transmite em dialeto, ou seja, com a linguagem das mães, aquele dialeto que as mães sabem falar com os filhos ". São as mães que transmitem, muitas vezes, o sentido mais profundo da prática religiosa: as primeiras orações, os primeiros gestos de devoção, o valor da fé na vida de um ser humano. É uma mensagem que as mães que acreditam sabem transmitir sem tantas explicações: estas chegarão depois, mas a semente da fé está naqueles primeiros, preciosíssimos momentos. Sem as mães, não somente não haveria novos fiéis, mas a fé perderia boa parte do seu calor simples e profundo.

Portanto, se na vida, ninguém nasce sozinho, ninguém cresce sozinho, ninguém é feliz sozinho. Na experiência de fé também somos herdeiros da fé “dos outros”, de modo muito particular, podemos dizer que somos herdeiros da fé das mulheres. Parafraseando o Pe. J. B. Libânio podemos dizer: “na experiência de fé trazemos sempre a vó na nuca”.

 2. A mariologia dos evangelhos está em função de Cristo e da Igreja

 Sendo humano como nós, Jesus também precisou de uma mãe, de um pai, de uma família. Assim como toda criança, Jesus foi cuidado, alimentado e educado pela sua mãe Maria e o seu pai José. Com eles, Jesus aprendeu a honestidade e o valor do trabalho; a sensibilidade e a ternura pelos outros; a fé e a obediência a Deus. Neste sentido, afirma o Papa Francisco: “a relação muito próxima de Maria com Jesus é central, pois é algo natural entre a criança e sua mãe. O corpo de Cristo foi tecido no seio de Maria, criando efetivamente uma inseparabilidade. Isto quer dizer que Maria está unida a Jesus porque teve o conhecimento do coração dele, o conhecimento da fé, alimentada pela sua experiência materna e pelo vínculo íntimo com seu Filho. É por isso que Jesus não pode ser compreendido sem sua Mãe”.

É preciso reconhecer que a Maria do Novo Testamento está a serviço de Cristo e da Igreja, ou seja, há sempre um risco de querer ler a Maria dos evangelhos simplesmente como uma figura história, como se os evangelhos fossem uma biografia de Maria. Basta analisar a sobriedade em relação à Maria nas cartas de São Paulo e no evangelho de Marcos, bem como, a leitura teológico-pascal de Lucas, Mateus e João.

Em Paulo temos apenas uma referência a Maria, para afirmar que Cristo é plenamente humano (“Nascido de mulher” Gl 4,4). Esse texto de Paulo é o mais antigo do Novo Testamento e, apesar dessa sobriedade em relação à mãe do Senhor, ele revela uma singular densidade, pois com ele inicia-se a união da mariologia com a cristologia. Como escreve Fernando Pessoa: “a criança tão humana que é divina”.

Em Marcos temos dois textos relativos a Maria (3,31-35 e 6,1-6). No primeiro a mãe de Jesus está do lado de fora (ainda não entrou para o discipulado), no segundo, Maria é citada pelos conterrâneos de Jesus com a expressão “filho de Maria” e “filho do carpinteiro”, para tentarem desqualificar a ação messiânica de Jesus. Mais uma vez encontramos a figura de Maria vinculada a Jesus. Apesar de ser uma referência indireta a Maria, e uma tentativa de diminuir a pessoa de Jesus, tal referência não deixa de ser significativa. Pois a opção de Jesus de nascer de uma “jovem pobre e comum” e de ser chamado “filho de um trabalhador”, revela a opção de um Deus Kenótico, que se esvazia a si mesmo, fazendo-se pobre com os pobres, servo de todos (cf. Fl 2,5-11).

Mateus, Lucas e João fazem uma leitura teológico-pascal de Maria. Por ser mais judaico, Mateus privilegia a figura de José. Porém, cita as cinco mulheres na genealogia de Jesus (cf. Mt 1,1-16). Aqui vale uma observação. Todas essas mulheres citadas por Mateus são mulheres pobres, marginalizadas ou em conflito com “a moral dos bons costumes”: Tamar, nora de Judá que o engana e seduz (Gn 38); Raab, a prostituta que esconde os espiões de Israel (Js 2); Rute, a estrangeira moabita, avó de Davi; Bersabéia esposa de Urias, a adúltera que se tornou mãe de Salomão (2 Sm 11) e Maria mãe de Jesus (Mateus não chama Maria esposa de José, mas sim o contrário, José esposo de Maria. Aqui também podemos observar a opção de Jesus pelos “perdidos” e marginalizados. Maria faz parte do grupo das mulheres marginalizadas de ontem e de hoje.  

Lucas, tendo como destinatário os gentios, valoriza a figura de Maria e das mulheres, para enfatizar o cuidado de Deus pelos pobres e “pecadores”. Maria é apresentada como modelo do discípulado cristão do terceiro evangelho, Aquela que “escuta a Palavra e a guarda no coração”. Além da figura de Maria, Lucas mostra também que Jesus chamou mulheres para o discipulado; além da amizade muito próxima de Jesus com Maria e Marta (Lc 10,38-42), etc.

João, mesmo não mencionando o nome de Maria, coloca a mãe de Jesus no início (bodas de caná Jo 2,1-12) e no final da vida pública de Jesus (aos pés da cruz Jo 19,25-27). Aqui encontramos uma Maria intimamente vinculada a Cristo e à Igreja, como será também no livro do Apocalipse.

Uma observação importante: todos os evangelistas narram as mulheres como protagonitas do anúncio do Ressuscitado, ou seja, as mulheres são as primeiras testemunhas do Cristo vivo e ressuscitado. Por isso, Maria Madalena é chamada “apóstola dos apóstolos”.

Podemos concluir que a mensagem da Escritura acerca da Maria é sóbria, porém condensa a totalidade da história da salvação. Como afirma Bruno Forte: “Poder-se-ia compendiar a mensagem da Escritura acerca da Virgem Mãe dizendo que ela é o ícone de todo mistério cristão, a palavra abreviada de tudo o que Deus trinitário realiza para o homem e, ao mesmo tempo, de tudo o que a criatura é tornada capaz, por seu Deus, de oferecer-lhe em resposta, em sua liberdade” (Bruno Forte, Maria, mulher ícone do mistério, p. 97).

A Maria das Escritura é, portanto, a mãe de Jesus, o modelo de discípulo e ícone da Igreja. Como nos ensina Pe. Júlio Maria: “É pelo conhecimento do culto de Maria que podemos estudar e contemplar tudo que há de interior e profundo na Igreja, da qual é boa Mãe. Como contraprova, não se conhece perfeitamente Maria e não podemos honrá-la dignamente, senão entrando no espírito desta mesma Igreja, a quem foi confiado o místico santuário de seu amor”.

 

[1] Só para citar um exemplo concreto, Caetano Veloso diz que sempre foi ateu, e até mesmo um crítico da religião, porém, seus filhos se tornaram evangélicos por causa da sua empregada doméstica que era evangélica. “Minha geração teve que romper com uma fé imposta, a deles teve que recuperar a religiosidade perdida”, afirma Caetano.

Foto: th.bing.com

 

 

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