A devoção Mariana e o lugar do feminino na experiência de fé: esperança e profecia II

A DEVOÇÃO MARIANA E O “LUGAR” DO FEMININO NA EXPERIÊNCIA DE FÉ: ESPERANÇA E PROFECIA - II

 Pe. Rodrigo Ferreira da Costa, SDN

(Texto apresentado na conferência virtual do tríduo em preparação ao 13 de maio 2024, dia dos Sacramentinos de Nossa Senhora)

Continuação...

3- A devoção mariana na fé do Povo fiel de Deus

Falando da devoção mariana, o Papa Francisco faz uma observação importante: “A devoção à Mãe de Deus não é etiqueta espiritual, mas uma exigência da vida cristã. Olhando de fato para Maria, somos encorajados a deixar tantos pesos inúteis e a redescobrir o que importa: [...] a mãe é a assinatura de Deus na humanidade. O seu olhar maternal infunde confiança, ajuda a crescer na fé e lembra-nos que a ternura é essencial para a fé, pois afasta a mornidão”.

É preciso compreender que a “devoção” escapa da normatização da hierarquia da Igreja. Isso tem a ver com o próprio Espírito Santo que “sopra onde quer” (cf. Jo 3,8). Esta unção do Espírito Santo se manifesta no sensus fidei dos fiéis. “Em todos os batizados, do primeiro ao último, opera a força santificadora do Espírito que impele a evangelizar. O povo de Deus é santo em razão dessa unção que o torna infalível in credendo. Isso significa que quando crê não se engana, ainda que não encontre palavras para expressar a sua fé” (Comissão Teológica Internacional, 2018, n. 56).

Nesse sentido afirma o Papa Francisco: “Se se quiser saber quem é Maria, pergunta-se aos teólogos; se se quiser saber como amá-la, pergunta-se ao povo.” Daí a importância de caminharmos juntos com o povo, de valorizar a “piedade popular”, pois Cristo cumpre o seu papel profético não só através da hierarquia, mas por meio da totalidade do Povo de Deus, porque “todos os batizados participam, cada um ao seu modo, dos três ofícios de Cristo: profeta, sacerdote e rei” (LG, n. 12). Por isso, ignorar o sensus fidei dos fiéis seria uma forma de querer “controlar” a ação do Espírito que Deus quer infundir “sobre toda carne” (cf. Jl 3, 1; At 2,17).

É preciso considerar, portanto, o “saber do povo” não como um não-saber ou como um saber implícito, fraco, mas há que considerar que há uma sabedoria nos pobres, eles têm muito a nos ensinar. Como nos recorda o Papa Francisco (EG, n.31), “o próprio rebanho possui o olfato para encontrar novas estradas” de evangelização.

Penso que uma das características fundamentais da piedade popular é que ela é espontânea, livre e vivencial. Podemos dizer que nela há sempre a “presença real”, o corpo vivo, a realidade concreta. Não é uma ideia, um conceito abstrato, um ritualismo formal e sem vida. Talvez seja essa “verdade” que atrai tanto as pessoas, muito mais do que as nossas belas liturgias. Basta perceber a alegria do Povo santo de Deus nas festas de seus santos padroeiros, nas peregrinações e etc[1].

Claro que existe o risco de cair numa fé supersticiosa, pouco comprometida com a transformação das estruturas de pecado, de deixar-se manipular até mesmo pelos ministros ordenados... Porém, penso, que esse risco está presente em todos os estágios da fé, inclusive na hierarquia da Igreja. Portanto, mais do que o medo dos “desvios” da fé, precisamos temer em não perceber a ação do Espírito Santo no povo fiel de Deus.

Outra característica da piedade popular é a presença das mulheres. Isso porque as devoções, geralmente, nascem nas casas e não no templo, vem de “baixo” e não dos dogmas. Podemos dizer que a devoção popular esconde uma resistência profética. Como podemos ver no testemunho das parteiras no Egito que com sabedoria e coragem resistiram ao mandato do rei do Egito e não mataram os meninos que nasciam das mulheres hebreias (cf. Ex 1,1-22) ou no Magnificat de Maria (Lc 1, 46-55) que reconhece o favor de Deus aos pobres e humildes, mas que também “derruba os poderosos de seus tronos”. Talvez por isso, o Documento de Puebla (n. 297) tenha afirmado que “o Magnificat é espelho da alma de Maria, o cume da espiritualidade dos pobres do SENHOR e do profetismo da Antiga Aliança. É o cântico que anuncia o novo Evangelho de Cristo. É o prelúdio do Sermão da Montanha.”

A Maria do Magnificat é a mulher da resistência que, mesmo em meio aos sofrimentos e angústias, não deixa morrer a fé e a esperança.  É a mulher pobre e humilde que acredita na força revolucionária da ternura. É a profetiza do povo que reconhece a ação de Deus em seu favor e que não se cala diante da injustiça e opressão dos poderosos. Como escreve D. Bonhöffer comentando o Magnificat: “Não fala aqui a doce, terna e sonhadora Maria das imagens, mas uma Maria apaixonada, impetuosa, altiva, entusiasta. Nada dos acentos adocicados e melancólicos de tantos cantos de Natal, mas o canto forte, duro, impetuoso dos tronos que desmoronam, dos senhores humilhados, da potência de Deus e da impotência dos homens.” 

 4- O “lugar” do feminino na vida e na missão da Igreja

Que as mulheres são as grandes responsáveis pelo testemunho e a transmissão da fé, acredito que ninguém duvide. Porém, elas ainda estão fora dos principais postos de decisão na Igreja. Devemos reconhecer a dívida que a Igreja tem para com as mulheres. Como nos faz questionar o relator geral do Sínodo, cardeal Jean-Claude Hollerich: “O batismo das mulheres não é inferior ao batismo dos homens. Como podemos garantir que as mulheres se sintam parte dessa Igreja missionária? Nós, homens, percebemos a diversidade e a riqueza dos carismas que o Espírito Santo deu às mulheres? [...] Sentimo-nos enriquecidos ou ameaçados quando compartilhamos a nossa missão comum e quando as mulheres são corresponsáveis na missão da Igreja, com base na graça do nosso batismo comum?”

Talvez seja necessário recuperar a humanidade de Maria (a Maria mulher) e o “lugar” do feminino na devoção Mariana. Pois, quando muito ideologizada, quando pautada num ideal de mulher que não existe, a devoção mariana pode servir para justificar um lugar que nunca foi o de Maria. O resultado disso é que a religião acaba por se tornar um instrumento do machismo, que violenta o cotidiano existencial das mulheres, que nunca alcançarão aquele ideal fantasioso.

Como nos recorda o Papa Francisco: “duplamente pobres são as mulheres que padecem situações de exclusão, maus-tratos e violência, porque frequentemente têm menores possibilidades de defender os seus direitos”. É preciso lembrar também das mulheres profanadas no “altar” da publicidade; das silenciadas na família, na sociedade e nas Igrejas; das mães que assim como Raquel (cf. Jr 31,15-17) e as mulheres que seguiam a Via Crucis de Jesus (cf. Lc 23,27-28) choram a morte de seus filhos; e de tantas outras formas de violência contra a mulher... Esquecendo-nos que “toda a violência infligida à mulher é profanação de Deus, nascido de uma mulher” (Papa Francisco).

Maria também é mulher, mãe, vítima das violências de seu próprio tempo. Ela é como tantas outras mulheres hoje! Nós, os homens de fé, precisamos reconhecer Maria em seu justo lugar e tirar as consequências da devoção mariana para a nossa práxis cristã. Porque Maria foi aquela que cantou a inversão do poder, para que a justiça pudesse acontecer! Foi a mulher da igualdade, da dignidade, da força e da resiliência. A mulher da esperança, da pressa missionária, da profecia ousada e da resistência inabalável.

Não basta, portanto, idealizar Maria nem romantizar a figura da mulher, mas reconhecer que a mulher “também sabe amar, sabe lutar e sabe sonhar”[2]. Por isso, “se nossa Espiritualidade não tivesse o toque feminino e maternal de Maria, correria o risco de se desumanizar, de perder o seu aspecto afetivo e espontâneo que costuma se revestir” (Segundo Galilea).

Maria, mãe de Jesus Cristo e da Igreja, rogai por nós!  

 

Referências:

FORTE, Bruno. Maria, a mulher ícone do mistério. São Paulo: Paulinas, 1991.

SCANNONE, Juan Carlos. A teologia do povo: raízes teológicas do Papa Francisco. São Paulo: Paulinas, 2019.


Foto: Paróquia S. Manoel Mutum

[1] Uma observação importante feita pelo Pe. Mundinho na festa do Jubileu do Bom Jesus, mas que pode ser observada em muitos outros lugares de devoção, muitos vão ali fazer um pedido, uma promessa, mas a grande maioria vai para agradecer. Portanto, é uma fé experimentada na vida, não é uma ideia fria de fé.

[2] Canto da mulher latino-americana, Pe. Zezinho.

Confira a primeria parte do artigo: A devoção Mariana e o lugar do feminino na experiência de fé: esperança e profecia I

 

 

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